Capitalismo Tardio

Eduardo Fraga
11 min readDec 21, 2020

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Anotações sobre capitalismo tardio, a partir do livro de Jonathan Grary, traduzido por Joaquim Toledo Jr.

24/7 — Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, Jonathan Crary

“O espetáculo expressa nada mais do que o desejo de sono da sociedade.” Guy Debord

  • última atualização em 21 de dezembro de 2020.

Soldado Sem Sono

p.12 -18

A partir da busca intencional do setor militar pelo “soldado sem sono” e a tradicional transferência de inovação que esse setor faz para o ‘mercado’, afinal são os laboratórios privados que criam e testas as drogas militares, o autor chama atenção para evolução da produtificação contra o sono.

De remédios a produtos de bebida vendidas em qualquer posto de gasolina, o culto ao pouco sono se materializa nas publicações no Linkedin sobre como ser mais produtivo dormindo menos, ou nas drogas prescritas para aumentar a produtividade como o Adderall, favorita dos universitários das melhores escolas americanas.

Jonathan Grary utiliza essa prisma, da busca por menos sono, para analisar as consequências da globalização do neoliberalismo e dos processos a longo prazo da modernização ocidental. “Longe de atribuir a esse conjunto de fatos um significado explicativo em particular, procuro tomá-lo como acesso temporário a alguns dos paradoxos de um mundo onde o capitalismo do século XXI conhece uma expansão ilimitada.”

Grifo meu em expansão ilimitada, para destacar que desde o final da guerra fria, o modelo o capitalista-democrata-liberal pode se expandir sem um enfrentamento ideológico. Passado quase 3 décadas, fica claro o poder e centralidade ‘capitalista’ do modelo, a ponto de surgir o capitalismo de Estado da China, cada vez se mostrando mais eficiente para o capital sem os pilares da democracia e liberdade.

Segundo o autor, a evolução do capitalismo estaria intimamente conectada com a diminuição do sono como forma de poder.

“Um ambiente 24/7 aparente ser um mundo social, mas na verdade é um modelo não social, com desempenho de máquina — e uma suspensão da vida que não revela o custo humano exigido para sustentar sua eficácia.” p. 18

Conceito: 24/7

p.19–26

“Um tempo de indiferença, ao qual a fragilidade da vida humana é cada vez mais inadequada.”

A normalidade do trabalho sem pausa, sem limites. A disponibilidade absoluta. Um estado de necessidade ininterrupta, sempre encorajadas e nunca aplacadas.

Para além da acumulação de coisas, superabundância de serviços, imagens, procedimentos e produtos químicos.

O imperativo 24/7 tornaria, a longo prazo, o indivíduo dispensável e, com seu gasto permanente e seu desperdício sem fim, a catástrofe ambiental como destino certeiro.

A transformação em mercadoria e investimento de todas as necessidades humanas essenciais: fome, sede, desejo sexual, amizade…A apropriação dos momentos significativos da existência humana pelo tempo de trabalho, pelo consumo ou pelo marketing.

“O fato de passarmos dormindo um bom período da vida, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo.” p. 20

A impossibilidade de extrair valor do sono vira oportunidade para vender (convencer) as maravilhas de dormir menos.

O regime 24/7 mina paulatinamente as distinções entre dia e noite, claro e escuro, ação e repouso. É uma zona de insensibilidade, de amnésia, de tudo que impede a possibilidade de experiência.” p.26

Sleep mode

p.22

“No paradigma neoliberalismo global, dormir é, acima de tudo, para os fracos.” p.23

Horas de Sono (americano médio)
10 horas (início séc XX) -> 8,5 horas -> 6,5 horas (2012)

A construção cultural é tão forte em direção do imperativo 24/7, que as máquinas atuais possuem a função sleep mode, um modo de consumo reduzido, mas sempre de prontidão. Superando a lógica do ligado/desligado e criando uma realidade onde “nada está ‘desligado’ e nunca há um estado real de repouso”.

Biodesregulamentação
Termo criado pela filósofa Teresa Brennan “para descrever as discrepâncias brutais entre o funcionamento temporal de mercados desregulamentados e as limitações físicas intrínsecas aos seres humanos obrigados a se conformar a essas demandas”.

“O tempo para descanso e regeneração dos seres humanos é caro demais, não é estruturalmente possível para o capitalismo contemporâneo.” p.24

Nesse contexto, a insônia é o estado perfeito para o capitalismo tardio. O estado de produção, consumo e descarte sem pausas.

“A insônia é um modo de imaginar quão difícil é a responsabilidade individual diante das catástrofes de nosso tempo.” Emmanuel Lévias

A privação do sono, seria uma condição generalizada da privação individual do presente, uma desumanização (worldlessness).

Alucinação da Presença

p.37–44

“O 24/7 anuncia um tempo sem tempo, um tempo sem demarcação material ou identificável, sem sequência nem recorrência. Implacavelmente redutor, celebra a alucinação da presença, de uma permanência inalterável, composta de operações incessantes e automáticas.” p.37

Uma vez que é possível fazer compras, jogar, trabalhar, conversar em qualquer lugar ou situação, o “não tempo 24/7” se apropria de todos os aspectos da vida pessoal.

O 24/7 “incapacita a visão por meio de processos de homogeneização, redundância e aceleração”, seria a crise do observador, que se acumulou independente de quaisquer tecnologias específicas.

“Embora imersos em imagens e informações a respeito do passado e seus catástrofes recentes, somos cada vez mais incapazes de lidar com esses vestígios de um modo que nos permitiria superá-los em nome de um futuro compartilhado.” p.44

Imagens que viraram descartáveis e esvaziadas, arquiváveis e por isso jamais jogadas fora, um presente cada vez mais congelado e desprovido de futuro.

Ilusão do Deslocamento Histórico

p.44 / 48

Clichê: haveria um deslocamento histórico em razão da capacidade das tecnologias de informação e comunicação terem excedido todo um conjunto de formas culturais mais antigas.

“Passagem da produção industrial a processos e serviços pós-industriais, das mídias analógicas às digitais ou de uma cultura fundada na imprensa a uma sociedade global unificada pela circulação instantânea de dados e informações.” p.44

A caracterização do presente como era digital seria “a ilusão de um nexo unificador e durador entre os inúmeros e incomensuráveis elementos constitutivos da experiência contemporânea”.

Uma linearidade ilusória compostas por simplificações como a Idade do Bronze ou a era do vapor e que naturalizam comportamentos e simplificam impactos, como o caso da suposta harmonia entre os adolescentes e crianças de hoje com a “inteligibilidade inclusiva e sem arestas de seus universos tecnológicos”.

“Diante de exigências tecnológicas em transformação permanente, jamais chegará um momento em que nós finalmente as ‘alcançaremos’, seja enquanto sociedade ou enquanto indivíduos.” p.46

A realidade diversa do nosso tempo se caracterizaria pelo “permanente estado de transição”, o que levanta a questão, como estudar uma cultura constantemente em transformação?

Também leva a uma questão menor, a frase “o mundo mudou” perde o sentido.

Por exemplo, a categorização “novas mídias”. Desde 1990, segundo o autor, mesmo os esforços mais inteligentes são frequentemente limitados pela descrição e análise de um novo paradigma ou regime tecnológico/discursivo que seria inferido pelos próprios dispositivos, redes, instrumentos, códigos e arquiteturas.

Todavia, não estamos, simplesmente, passando de “uma ordem dominante de sistemas maquinícos e discursivos a outra”.

“Hoje, mais do que pensar sobre o funcionamento e os efeitos particulares de novas máquinas ou redes específicas, importa avaliar como a experiência e a percepção estão sendo reconfiguradas pelos ritmos, velocidades e formas de consumo acelerado e intensificado” p. 48

Inovação

p. 49

As inovações tecnológicas da nossa era (celular, streaming,…) não são rupturas e nem revoluções. Seu tempo de duração e relevância é tão curto que é melhore entende-las como “fluxo transitório de produtos compulsórios e descartáveis”.

Para o autor, as atuais evoluções das tecnologias de comunicação seriam a perpetuação do exercício banal de consumo ininterrupto, isolamento social e impotência política.

A consistência entre todas essas inovações tecnológicas seria a “crescente integração de nosso tempo e de nossa atividade aos parâmetros de intercâmbio eletrônico”. Os investimentos são direcionados para “reduzir o tempo de tomadas de decisão, a eliminar o tempo inútil de reflexão e contemplação”. A eliminação da perspectiva de um tempo estendido compartilhado.

“Essa é a forma do progresso contemporâneo — o encarceramento e o controle implacáveis do tempo e da experiência.” p.49

Ou seja, a inovação, dentro do capitalismo, é sobre a simulação contínua do novo. Como fugir disso?

Consumo de tecnologia como estratégia de poder

p. 50 / 56

Nesse contexto emergente, organização da sociedade de consumo convive com duas lógicas.

Em conjunto com a lógica da obsolescência programada, que segue estimulando a substituição e aprimoramento de diversos produtos, focada em margem de lucro ou participação no mercado, surge um novo ritmo acelerado do ‘aprimoramento’ — ou da reconfiguração de sistemas, modelos e plataformas.

Desenvolvido nos modelos de integração vertical desenvolvidos por Microsoft, Google e outras, desempenha papel decisivo na reinvenção do sujeito (docilidade e isolamento) e na intensificação do controle.

“Se, por boa parte do século XX, a organização das sociedades de consumo esteve ligada a modalidades de regulação e obediência sociais, hoje a gestão do comportamento econômico é idêntica à formação e perpetuação de indivíduos maleáveis e submissos.” p.51

Cada substituição significa um aumento exponencial de escolhas e opções, um contínuo processo de distensão e expansão. Multiplicam-se as áreas de tempo e experiência.

“Toda aparente novidade tecnológica é também uma dilatação qualitativa de acomodações e dependências a rotinas 24/7, e vem acompanhada de uma proliferação de aspectos que transforma um indivíduo em uma aplicação de novos sistemas e esquemas de controle.” p.52

O ritmo incessante de consumo tecnológico impede que esse produto integre o cenário de nossas vidas. O conteúdo é atropelado por capacidades operacionais e de desempenho. A função de um dispositivo é um fim e si mesmo, proporcionar ao usuário uma realização ainda mais eficiente de suas próprias tarefas e funções de rotina que não escolhemos de fato. Seria, assim, sistematicamente impossível haver um momento de pausa dedicado a preocupações ou projetos coletivos.

“A produção acelerada de novidades desativa a memória coletiva — a evaporação do conhecimento histórico nem precisa ser imposta de cima para baixo. As condições cotidianas de comunicação e acesso à informação garantem o apagamento sistemático do passado como parte da construção fantasmagórica do presente.” p.54

Ciclo Sem Fim — a desestabilização do ‘observador’

“Atos individuais de visão são solicitados ad infinitum e se convertem em informações, que por sua vez servirá ao aprimoramento das tecnologias de controle e se transformará numa forma de mais-valia, em um mercado baseado na acumulação de dados a respeito do comportamento do usuário.” p.56

Mito do Hacker Solitário

p. 55 / 58

A fantasia de que a relação assimétrica entre indivíduo e rede pode oferecer a vantagem criativa para o sujeito. A ilusão de escolha e autonomia é um dos pilares do sistema global de autorregulação. (p. 55)

Tecnologia para nos ajudar na organização burocrática de nossas vidas, com tarefas e rotinas que não escolhemos de fato. Tecnologia que gera a ilusão de que podemos ‘ser mais espertos do que o sistema’.

Segundo Giorgio Agamben, hoje não haveria “um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo”.

Esse ciclo de inovações tecnológicas levaria a frustrações de todo tipo.

“Caracterizar a ordem atual, ao fim inviável e insustentável, como tudo menos inevitável ou inalterável, é incorrer em uma forma contemporânea de heresia(…)

Elaborar estratégias de vida que poderiam desvincular a tecnologia da lógica da ganância, acumulação e espoliação ambiental é algo de proibições institucionais contínuas.” p. 58

Conformidade Social

p. 64 / 69

O aumento da classificação de estados emocionais em patologias num lógica de marketing (criar mercado).

O mercado global depende da sua capacidade de previsão, quanto mais uniforme, mais fácil de prever.

Diferente do tradicionalmente aceito na teoria das sociedades de massa — criação de indivíduos semelhantes — o que ocorre é a redução das diferenças.

A eliminação das diferenças pelo estreitamento do espectro de comportamento para ser eficiente e bem sucedido nas instituições contemporâneas (emprego, relacionamento, redes sociais,…).

Muda a composição fundamental das narrativas de vida: em vez de uma sequência convencional de lugares e eventos associados a família, trabalho e relacionamentos, o principal fio condutor de nossa história de vida são as mercadoria eletrônicas e serviços de mídia por meio dos quais toda experiência é filtrada, gravada ou construída. p67

Somos ‘habitantes inofensivos e maleáveis de sociedades urbanas globais’, ‘escolhemos fazer o que nos mandam fazer’, ‘compramos produtos que nos foram recomendados pelo monitoramentos de nossas vidas’ e ‘voluntariamente oferecemos feedback a respeito do que compramos’.

Somos ‘o sujeito obediente que se submete a todas as formas de invação e vigilância’.’E que ingere comida e águas tóxicas. E vive, sem reclarar, na vizinhança de reatores nucleares.’

Relação entre tempo e trabalho

p. 71 /

A iluminação artificial das fábricas instaura uma ‘relação abstrata entre tempo e trabalho’. Ela reconfigurou a relação, agora é possível ultrapassar as limitações sociais e naturais, trabalhar para além das horas com sol.

A modernidade (...) é sobretudo a experiência híbrida e dissonante de viver intermitentemente no interior de espaços e velocidades modernizadas e, no entanto, habitar ao mesmo tempo os resquícios de ‘mundos de vida pré-capitalistas’, sejam sociais ou naturais. p75

Os nazistas, em 1945, ao mesmo tempo que desenvolviam mísseis V-2, dependiam de 1,5 milhão de cavalos para o transporte militar essencial.

A 2º guerra mundial como ‘um evento inédito de homogeneização’, a ‘taba rasa que seria a plataforma da atual fase da globalização do capitalismo’.

Cotidiano, ‘constelação vaga de espaços e tempos fora de tudo que era organizado e institucionalizado em trono do trabalho, da conformidade pelo consumismo’.

A partir dos anos 1980, escanção do neoliberalismo, a comercialização do computador pessoal e o desmantelamento de sistemas de proteção social = ataque a vida cotidiana. A monetização do tempo, redefinido como um agente econômico integral (24/7).

Sociedades de controle, termo criado por Gilles Deleuze. Sociedades onde o poder está na regulação institucional da vida social e individual que acontece de forma contínua e ilimitada. Nas sociedades de controlw, a vida cotidiana — espaços livres do monitoramento, entre a escola, trabalho e lar — desaparecem. Um ‘regime de controle que corresponde a transformações no sistema-mundo capitalista, à passagem do capitalismo industrial para o financeiro’.

Soma-se a previsão de Deluze, a ‘invenção de necessidades individuais’, e o consumismo se expande em direção à atividade 24/7, ‘baseada em técnicas de personalização, de individuação, de interações com máquinas e de comunicação obrigatória’.

Guy Debord, ao invés da mudança de paradigma proposta por Deluze, indica uma mudança na ‘natureza do espetáculo, uma passagem do espetáculo difuso dos anos 1960 (olhar sobre o ocidente) para o que, a seu ver, é um espetáculo global integrado’. A vida cotidiana sem relevância política — como uma simulação oca de sua antiga substancialidade embalada pela promessa de uma era que, com a queda do Muro de Berlin e da bipolaridade da Guerra Fria, se anunciava pós-política e pós-ideológica.

O final do século XX integra, de forma muito abrangente, o sujeito humano a condição contínua imposta por um capitalismo global e inerentemente 24/7.

O alinhamento temporal do indivíduo com o funcionamento de mercados, em desenvolvimento há dois séculos, tornou irrelevantes as distinções entre trabalho e não trabalho, púbico e privado, vida cotidiana e meios institucionais organizados. Sob essas condições, continua sem controle a financeirização implacável de esferas antes autônomas de atividade social. O sono é a única barreira que resta, a única “condição natural” que subsiste e que o capitalismo não consegue eliminar. p84

Aprofundar

_ Teresa Brennan, Globalization and its Terrors: Daily Life in the West, 2003

_ Luc Boltanski e Ève Chiapello, The New Spirit of Capitalism, 2009

_ Hannah Arendt, The Human Condition, 1958

_ Gilles Deleuze e Félix Guattari, A Thousand Plateaus, 1987

_ Giorgio Agamben, What is an Apparatus?, 2009

_ Bernard Stiegler, De la Misère Symbolique. V.1: L’Époque Hyperindustrielle. Paris: Galilée, 2004

_ Tiqqun, Théori du Bloom, 2004

_ Gilles Deleuze, Post-cript on Control Societies, in Negotiations 1972–1990

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